terça-feira, 19 de maio de 2009

O bom selvagem e a sociedade cruel

Uma das perguntas mais intratáveis da vida moderna é sobre se o indivíduo tem precedência sobre o ente coletivo, ou o contrário? Prevalecerá a preferência pessoal de cada um, ou a vocação altruísta de se sacrificar pelos demais? Nas sociedades primitivas, o problema era menos complicado porque a sobrevivência individual estava estreitamente ligada à do grupo. Mas por outro lado, o egoísmo grupal era implacável.Na era moderna, o indivíduo adquiriu autonomia, tornou-se cidadão votante e consumidor soberano. Os conflitos entre egoísmo e altruísmo foram complicados pelo anonimato, pela burocracia, e pelo gigantismo das sociedades. Fora do círculo íntimo da família nuclear, os laços de solidariedade tornaram-se indiretos e difusos.Mas há sempre algum altruísmo nas pessoas. Serão valores embutidos em nossa cultura por um legado religioso? Ou um impulso inato, recebido da natureza ao nascer? Sangue, e rios de tinta, ainda não responderam a essa pergunta. No século 18, J. J. Rousseau, invertendo muitos séculos da visão pessimista do homem naturalmente pecador e mau, embutida na tradição cristã, substituiu-a por uma idéia oposta: a do homem que nasce virtuoso, e degenera na sociedade. É o "bom selvagem", uma das contribuições iniciais da descoberta do Brasil ao pensamento europeu.A inversão de Rousseau teve consequências imprevistas. Se o problema residia na sociedade, bastaria ao homem transformá-la para voltar ao paraíso. Tentação tanto mais irresistível quanto estava acontecendo a transição do mundo pré-industrial para os horizontes inexplorados da Revolução Industrial. Durante três séculos, a Era da Razão vinha abalando os alicerces intelectuais da cosmovisão religiosa que sustentara a grande unidade espiritual da Idade Média. E a vitória do racionalismo humanista trazia no bojo o liberalismo político e econômico.Ao pular-se do pecado original para o "homem naturalmente bom num mundo mau", abriu-se uma grande florescência de socialismos que, em princípio, se propunham refazer a sociedade segundo uma utopia generosa. Em meados do século passado, veio um golpe: a teoria da evolução das espécies, de Darwin, segundo a qual, na natureza, os seres vivos evoluíam pela disputa de uns com outros no jogo da sobrevivência do mais apto. Essa idéia não foi logo entendida como ameaça pelos socialistas porque, como os seus coetâneos, tinham um profundo temor reverencial pela "ciência". Não demorariam, porém, a aparecer extrapolações como o "darwinismo social", e as idéias racistas supostamente "científicas". "Ao vencedor as batatas", como diria Machado de Assis.Ondas ideológicas se sucederam, sem se decidir de vez quais os fatores determinantes do comportamento humano: a natureza física, mais ou menos imutável, ou a sociedade e a cultura, amoldáveis em princípio pela ação política? Talvez o mais consistente tenha sido o paladino da "pátria do socialismo", Stalin, que, compreendendo o perigo das idéias, exterminou os hereges biólogos mendelianos, que duvidavam da verdade científica socialista, segundo a qual as características adquiridas pelo indivíduo se transmitiam por via hereditária.
Avanços recentes da genética trouxeram um complicador, ao sugerir que muitos traços comportamentais têm base física nos genes. Naturalmente, nenhum cientista respeitável chegou ao ponto de afirmar que o homem seja totalmente determinado pelo seu material genético. Mas certamente ficou enfraquecida a corrente externa que reduzia o indivíduo a meras determinações do contexto social.Não estou pretendendo debater a tese do "gene egoísta", conforme a polêmica expressão de Richard Dawkins. Nem se uma eficiente engenharia social é viável. Penso nessas questões porque me preocupo com o simplismo obtuso de inculpar-se a sociedade por todos os males possíveis e imagináveis: da seca do Nordeste à ignorância e às desigualdades. Carências há, sem dúvida.
Mas podem ser relativas, criadas pela insaciabilidade das veleidades humanas. Um IKung do deserto de Kalahari contenta-se com muito pouco, ao passo que um americano fica infeliz se tiver um pouco menos do que o vizinho do lado. E em São Paulo, presos condenados tocaram fogo nas celas porque queriam televisão a cabo e ar-condicionado!...Há século e meio, Marx achava que a riqueza resultava da exploração da mais-valia do trabalho proletário pela classe burguesa. A idéia não passou no "provão" da história.
As desigualdades nas sociedades modernas provêm sobretudo de que alguns conseguem maior produtividade, e acumulam mais, por conta do que produzem. Bill Gates começou na garagem de casa com talento e informação, e se fez multibilionário com suas inovações tecnológicas. O mistério do progresso está na inovação e na acumulação. A acumulação aumenta a desigualdade em relação ao que não acumulou. Há dois séculos passados, as diferenças de renda per capita entre os países ricos e os mais pobres eram de duas ou três vezes. O crescimento da produtividade dos atuais países industrializados, entre 1820 e 1913, foi quase sete vezes maior do que entre 1700 e 1820, e a renda real per capita cresceu três vezes no período.
Hoje, a diferença entre a Suíça e o Burundi, é de 390 vezes, e entre a média dos industrializados e a dos de mais baixa renda, é de 74 vezes. Possivelmente, o fator mais perverso terá sido o crescimento populacional descontrolado, que condenou os subdesenvolvidos a carregar água em peneira.Os governos já nos tungam uma proporção altíssima do PIB, superior à de qualquer país em desenvolvimento. No entanto, União, Estados e municípios estão reduzidos quase à indigência, e não cumprem direito suas funções sociais.
É preciso que se diga que a carga fiscal reinante em nosso manicômio tributário é exagerada para nosso nível de renda. A partir de certo patamar, tributar mais reduz a produtividade e a competitividade, piorando ao invés de melhorar as oportunidades de emprego.
O problema social brasileiro não se resolve gastando mais e sim gastando melhor.

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