quarta-feira, 24 de junho de 2009

MEC derruba tese de que negros não têm acesso às universidades federais

O que fazer quando se tem como principal política social um programa chamado Fome Zero e o melhor instituto de pesquisas oficiais descobre que o problema do país é o oposto, a obesidade? O que fazer quando uma proposta de reforma universitária é assentada sobre a premissa de que os negros só terão acesso ao ensino superior por meio de cotas e se descobre que a representatividade dos negros nas escolas superiores federais já é igual à existente na sociedade brasileira? Bem, no governo do PT essas perguntas tiveram uma mesma e surpreendente resposta: mudem-se as pesquisas, mantenham-se as políticas erradas e tome mistificação para cima do respeitável público!

O susto com as conclusões da pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostrando que os negros se fazem representar em proporção exatamente igual dentro e fora da universidade foi mal digerido no Ministério da Educação. "Essa pesquisa não podia sair desse jeito. Ela não está de acordo com a política do ministério", disse a VEJA um integrante da equipe do ministro Tarso Genro. Bem, era o que faltava. As pesquisas sérias em países sérios com governos sérios não têm de estar de acordo com os burocratas. Eles é que têm de se pautar de acordo com a realidade que as pesquisas mostram.

Segundo o estudo da Andifes, o número de negros nas universidades federais corresponde exatamente à sua participação na população brasileira, que é de 5,9%. Além disso, quase metade dos estudantes universitários, sejam eles brancos ou negros, pertence a famílias das classes C, D e E, nas quais a renda mensal total varia entre 207 e 927 reais. Estudos dessa natureza são uma excelente oportunidade para discutir os caminhos para democratizar o ensino no Brasil. Mas o governo, como tem acontecido com alguma freqüência quando confrontado com a realidade, preferiu atacar os números. Na segunda-feira passada, o MEC, que é favorável à política de cotas, montou uma operação para desqualificar o estudo que ele próprio financiou. O levantamento seria exposto numa entrevista coletiva marcada para segunda-feira. Como os resultados da pesquisa não combinavam com as convicções do ministro, sua divulgação foi cancelada. Alvoroçada, a burocracia correu atrás do plano B.

O principal executivo do ministério na área de pesquisas, Eliezer Pacheco, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), foi escalado para conseguir outros números. Pacheco, então, apresentou um estudo preliminar do Inep, realizado com base em dados do Exame Nacional de Cursos, para provar a necessidade da política de cotas. A propaganda não funcionou. Quase não há diferença entre as duas pesquisas, a censurada e a que foi tirada às pressas da gaveta. O levantamento da Andifes diz que os brancos representam 59,4% dos estudantes das universidades federais. O estudo do Inep afirma que esse número é 62%, uma diferença de apenas 2,6 pontos porcentuais. No que diz respeito aos dados sobre negros e pardos, público-alvo das políticas de cotas raciais, a diferença é, porcentualmente, ainda menor.
O economista Marcelo Néri, pesquisador do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, produziu, com exclusividade para VEJA, um estudo sobre a população universitária brasileira, de acordo com a raça. Usando dados do IBGE, Néri descobriu que, comparados a brancos e pardos, os negros são, de longe, o contingente que apresentou as maiores taxas de crescimento nas universidades públicas, entre 2001 e 2003. Nesse período, o número de estudantes negros de nível superior cresceu 55,1%, contra 14,9% a favor dos pardos e 10,4% para os brancos. "Essa é a melhor notícia no que se refere à participação dos negros nas universidades. O crescimento é impressionante", diz o economista. O aumento do número de negros e pardos nas universidades aconteceu antes da vigência da política de cotas. São pessoas que entraram na universidade pelos próprios méritos acadêmicos, dos quais poderão se orgulhar e cujo desempenho profissional futuro não ficará tisnado pelo fato de terem cortado caminho rumo ao diploma.

O sistema de cotas sugerido pelo MEC padece de falta de aprofundamento. Pela proposta, metade das vagas nas universidades será reservada a negros, indígenas e estudantes egressos de escolas públicas. Ocorre que, hoje, segundo a pesquisa da Andifes, 46,2% dos estudantes de universidades federais estudaram integralmente ou cursaram a maior parte do ensino médio em colégios públicos. Ou seja, a cota está praticamente preenchida. Em compensação, o governo federal e as administrações de estados que já instituíram as cotas não têm ainda um projeto para manter os alunos pobres na faculdade. A maior parte desses estudantes vem de famílias que não têm renda para bancar gastos com livros ou instrumentos usados em cursos como medicina e odontologia. Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), dos 8,7 milhões de reais previstos em orçamento pelo governo do estado para o atendimento a alunos carentes, só foi liberado 1 milhão. "Ação afirmativa não pode ser reduzida a cotas. Desse modo, se está fingindo fazer política de ação social", diz Raquel Villardi, sub-reitora de graduação da Uerj. Outro aspecto que tem sido relegado a segundo plano é a melhoria na qualidade do ensino fundamental e médio, sabidamente o único caminho para efetivamente democratizar o acesso à universidade. A atual política de cotas também corre o risco de ter outra nefasta conseqüência, a de atiçar artificialmente uma animosidade inter-racial, algo inusitado no Brasil.

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